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Clare Andrews: “ Deeds Not Words”
Ações Não Palavras


Mel Gooding


Neste recente conjunto de trabalhos, Clare Andrews alçou sua arte para um nível diferente. Ela sempre foi, de um modo espirituoso, uma irônica comentadora visual de eventos e instituições ( ora sarcasticamente amarga, ora comemorativa), e isso sempre foi animado por uma despudorada e, por vezes furiosa, política feminista. A obra de Andrews é diretamente política: seu trabalho é abertamente engajado com as realidades politico-sociais de nosso tempo, especialmente onde a obra se faz encontrar à vida cotidiana de mulheres, seja no trabalho, na saúde, no trabalho doméstico, etc. Isto não deve ser visto como uma sugestão a qualquer tipo de estridência propagandística pois, estilisticamente, Andrews – que é dotada de um notável dom para a observação naturalística - tem favorecido o que poderia ser descrito como um realismo cômico. Em seu trabalho nunca falta tanto a poesia quanto a sagacidade visual.

“Deeds Not Words” - a frase é inscrita na lápide de Emily Davison, a sufragista1 que morreu atirando-se em frente ao cavalo do Rei na corrida Derby de 1913 – é um projeto notável. No período centenário da maior e mais corajosa ação das Sufragistas, Andrews realiza uma comemoração artística de sua luta; e parece fazer soar a continua ressonância, como o primeiro e quinta-essencial movimento feminista. Não é um projeto fácil trazer uma série de eventos e imagens históricos e icônicos e, sem sentimentalidade ou cliché, sem um retrato simplista e pungente, achar um simbolismo e uma linguagem retórica adequados a este assunto e a sua relevância para o nosso próprio tempo.
Ela tem alcançado isso por conta da adoção de uma apresentação essencialmente abstrata, e pelo uso de imagens familiares (ou aparentemente familiares) que encontra na fotografia contemporânea às ações das Sufragetes. Ao ampliar, necessariamente e de maneira variada e estranhamente afetiva os borrões e distorções dos documentos da imprensa contemporânea e jornais cinematográficos, os quais já são por si só sombrios, a obra equaciona e generaliza o fundo branco e preto das imagens em uma quase abstração fantasmagórica. Mais do que qualquer outro artista contemporâneo,
1 Sufragista: mulher que reivindica para seu sexo o direito de voto em assembléias políticas.

Francis Bacon explorou estes processos por conta de seus efeitos emotivos, assim como ele reconheceu a potência-de-choque de uma imagem icônica amplamente conhecida, como a do Papa Inocente ou Eichmann em Jerusalém, ambientado no espaço abstrato.
Andrew aprendeu com o exemplo poderoso de Bacon, porém sem impor as distorções viscerais da carne que caracterizam-no o trabalho, e sem lançar mão de versões coloridas para imagens originalmente em preto e branco. Ela trouxe para as suas representações pictóricas de conhecidas imagens de eventos reais – a morte de Davinson, a prisão de de Emmeline Pankhurst em 1914 – a sua própria paleta de música; estritamente formal, emblemática ( o roxo, o branco e o verde são as “cores” das Sufragetes, no sentido transmitido pelo uso deste termo em relação a uma bandeira) ritmicamente repetitiva e audaciosamente significativa.

A metáfora musical é adequada: o grupo como um conjunto constitui uma suite em um tema, com variações, onde cada peça se relaciona com as demais em termos formais e temáticos; o todo apresentando uma unidade cumulativa e coerência. Isto traz a mostra de Andrews em direção a um nível de abstração que é novo em seu trabalho e que aumenta sua relevância política mais pela ( relativa ) falta de conteúdo narrativo circunstancial. É a sua clareza emblemática (um grau de simplicidade generalizada ) que distancia a suite do documentário-realidade e dá às imagens uma ressonância mais universal e simbólica. Estas pinturas transfiguram as Sufragetes no que eu descreveria como figuras representativas: não tanto um “povo” histórico como sinais emblemáticos. A unidade estilística – as ordenações abstratas, cores e motivos recorrentes, figuração estilizada, configurações deliberadas ( trípticos, estilo-bandeira tricolores, etc )- reforça a aplicabilidade política das imagens-motivos, as tirando de seu tempo e as introduzindo no nosso.


Outubro de 2011


CLARE ANDREWS E A PINTURA;
ABANDONO E LUMINOSIDADE.

Antes e acima de tudo, o que se encontra na obra de Clare Andrews é pintura. Uma pintura de oposições, em que as extensões das cores, metálicas e chapadas "contracenam" com as fugidias personagens realistas, quase "cartoon", quase fotografia. Imperturbável diante dos extremos, a grande personagem do conjunto é a pintura! Grandes pinturas de vocação discursiva, impressionando pelas dimensões, qualidade pictórica e senso de visão treinado para estender-se apenas ao que realmente interessa, no melhor dos momentos e das coisas captadas.

A figuração também é recurso pictórico. Sua decodificação é rigorosamente aberta e o discurso da obra é pessoal do espectador. A artista não se pronuncia, se distancia das emoções. Não formula roteiros, nem narrativas.

Exercício e solidão. A pintura é solitária e é árduo o exercício da colocação da tinta na tela. Da labuta cotidiana, resulta uma obra de qualidade impecável e de acabamento primoroso.

E há a cor. Em Clare Andrews, a cor é de rara especialidade.

Brilha, vibra, acompanha e completa a grandiosidade das dimensões das telas. Quadros de dimensões cenográficas e um quê de filme antigo. E o grande campo dourado funciona como contraponto de luz à agilidade Flamenca de cena misteriosa. A cor imprime o estranhamento do "duplo", o fascínio do mistério e a eloquência silenciosa da busca e da chispa criadora.

A energia exercida pela cor, pelo brilho e o tamanho monumental, na obra de Clare Andrews, induz a concentração e o fascínio do olhar por encantamento luminoso. E a convicção de que se esta diante do especial, do singular e do original.

João Henrique do Amaral
Diretor, Museu de Arte Contemporanea de Curitiba, Brazil

Do catálogo de 'Silent Pictures'
Celma Albuquerque Arte Contemporanea
Belo Horizonte, Brasil


 
 



PINTURA NÃO SÓ PARA SER VISTA.
MAS PARA SER SENTIDA.

ou
DE COMO PRESERVAR A HISTÓRIA ATRAVÉS DA PINTURA.
ou ainda
“UMA DAS VANTAGENS DE SER UMA ARTISTA MULHER:
VOCE VERÁ QUE, NÃO IMPORTA QUE TIPO DE ART FAÇA,
SERÁ SEMPRE TACHADA DE FEMININA.

Essa ultima afirmação está num dos trabalhos de 1988 das Guerrilla Girls.
Mas, para falar de pintura, que é o caso aqui, ainda perguntam se pintar - essa forma de Arte que diziam ter morrido - tem relevância nos dias de hoje. É claro que sim. Quem pinta já sobreviveu a tantas e várias outras formas de arte. Efêmeras.
Disposable. Ou não.
Um tipo de resistência? Paixão?

Pintura é como se fosse a própria sobrevivência da História.
Pegue um livro de arte e veja uma reprodução. De Ticiano, por exemplo. Perfeita, inteira, intacta, contando uma história. E feita há quase quinhentos anos.

E agora vem mais uma nova "re-descoberta" da pintura, como meio e processo criativo. Dessa vez, resultado da própria efervescência da era digital, e até conseqüência disto, pois o processo digital/videoclipado/publicitário/fast/renovável, de super-fast-uso é também intrinsecamente de alta e rápida substituição. Enquanto a Pintura, em sua forma, conteúdo e poder de contemplação, sobrevive, reconfirmando o seu espaço.
Esse reconhecimento hoje é oportuno para quem pinta. E para quem gosta de arte.

Clare Andrews pinta.

Seus instrumentos, pincéis, tela, tinta. E cabeça. O resultado, quadros e títulos que reunidos formam uma verdadeira eternidade precária, essa - Precarious Eternity - que mostra nesta exposição.

Clare Andrews poderia ser simplesmente chamada de "Pintora de Quadros". Mas pintando, recupera elementos da história da arte e do papel repressivo da história da mulher na história da arte. Opressivas. Oprimidas. O quê?

Reescrevendo a exploração da mulher como fetiches, símbolos sexuais, safados, e que nada de feminino possuem, pois machista sempre foi esse universo, precário e eterno, “re-surgem” telas grandes e aflitas, por trás da inocente simplicidade do dia-a-dia.

Lembro aqui de outra obra das Guerrilla Girls, que dizia que "menos do que 5% dos artistas que são mostrados em museus são mulheres, mas 85% dos nus são de mulheres".
Pois é essa "denúncia artística" que continua aqui, nessas telas.

Com elementos visuais que vão desde obras famosas, de mestres famosos, a fotos pornográficas de fotógrafos enrustidos, vitorianos, compostos com elementos de lembrança pop, como tulipa, salada de fruta, montanha etc. ou com imagens espelhadas, Clare compõe um universo de extrema sensibilidade poética, mas ao mesmo tempo, com forte teor plástico. Quase agressivo.
São imagens que, à primeira vista, não parecem ter nada em comum, mas que, ao se agruparem em dípticos ou trípticos, ou através das mesmas imagens repetidas e refletidas, formam uma nova realidade visual.
O que era óbvio e comum, em separado, forma o inusitado e o incomum ao se agruparem e ao se espelharem. Tornam-se imagens que constrangem, corroem, incomodam.

O resultado: telas feitas não só para serem vistas. Mas para serem sentidas.

E se isso é arte feminina, eu também sou. Eu, e a torcida do Flamengo.

Antonio Claudio Carvalho

Do catálogo de 'Precarious Eternity'
Museu de Arte Metropolitana de Curitiba, Brasil